Aliando proteção do espaço aéreo e
projeção internacional, o Brasil quer entregar ao resto do mundo um
cartão de visitas que o credencia como líder regional indiscutível.
Busca incrementar ao chamado "poder brando" ou "soft power" -
traduzido como capacidade de diálogo diplomático - uma carga extra
de persuasão, a força do "hard power".
Com tamanho interesse em jogo, não
dava para ser diferente: o imbróglio que envolve o projeto FX-2,
nome que batiza a renovação dos caças, vai chegando a quase uma
década, ao longo da qual - e principalmente agora - é acompanhado de
perto por líderes que dão as cartas no sistema internacional.
A passagem do rei Carl Gustaf e da
rainha Silvia por aqui é apenas o episódio mais recente. Antes dele,
o presidente francês, Nicolás Sarkozy, e a secretária de Estado
norte-americana, Hilary Clinton - para citar dois dos personagens
diretamente envolvidos na fase final do processo -, não se furtaram
a negociar e vir aqui fazer lobby pessoalmente.
Pela ordem, eles representam os
interesses das fabricantes Saab, Dassault e Boeing. Foram as três
mais bem avaliadas numa concorrência que teve ainda a participação
dos russos da Sukhoi, dos norte-americanos da Lockheed Martin e do
consórcio europeu Eurofighter.
Explica-se o difuso interesse: ao
oferecer uma generosa bolada de dinheiro e deixar encaminhadas
compras futuras, o Brasil trouxe para sua proposta o ávido interesse
da indústria bélica internacional. Em contrapartida, o governo
brasileiro exige transferência irrestrita de tecnologia e o direito
de produção sob licença da aeronave no Brasil e de exportação do
know-how ao mercado sul-americano.
Países que já tinham acertado suas
compras adiaram a decisão, à espera da opção brasileira - as
aeronaves escolhidas pelo Planalto tendem a ficar mais baratas para
outros compradores, uma vez que a fabricação de uma maior quantidade
de aeronaves deve gerar economia em escala de produção.
Necessidades
Dono do quinto território mais extenso do mundo, o Brasil tem espaço
de sobra para ser vigiado. Ainda mais em regiões ao mesmo tempo
inóspitas e estratégicas, de difícil porém imprescindível
monitoramento, como a Amazônia - isso sem falar no mar territorial,
que tem sob si as gigantescas reservas de petróleo na camada pré-sal.
Por si só, já se justificariam os investimentos.
O maior de 12 vizinhos também se
lança, ainda, como uma espécie de responsável pela harmonia e
integração do continente. Acima disso, quer deixar claro que, aqui,
quem manda é ele. Tenta, consequentemente, aproveitar a urgência dos
investimentos em defesa para adquirir o capital dissuasório que lhe
é necessário para barganhar no grupo das grandes potências.
Para atuar na vigilância do espaço
aéreo nacional, as 36 aeronaves - se a escolha for pelo
aparentemente favorito Rafale - devem sair por R$ 18 bilhões, apesar
de os suecos pedirem quase a metade disso em sua proposta. Nesse
projeto, a economia de dinheiro não é o essencial.
Tecnicamente, argumenta o governo,
com base na Estratégia Nacional de Defesa (END), vale fazer negócio
com quem se dispõe a transferir tecnologia, ponto crucial no
revigoramento da indústria bélica nacional. Politicamente, pesa o
fato de bater o martelo com quem pode ser decisivo na meta mais
ambiciosa do Palácio do Itamaraty: conseguir um assento permanente
no Conselho de Segurança da ONU.
Com os caças Rafale, a França promete
as duas coisas. O governo brasileiro confia, e assim avaliou que
compensa encarar os desgastes, mesmo tirando mais dinheiro do cofre.
Nos frequentes encontros que tiveram, os presidentes Luiz Inácio
Lula da Silva e Nicolás Sarkozy de certo modo se apalavraram, embora
o brasileiro negasse depois que qualquer decisão tivesse sido
tomada. Mas falta uma reunião com o Conselho de Defesa Nacional e o
anúncio sai, possivelmente, no mês que vem.
Últimas cartadas
Estados Unidos e Suécia, porém, não dão o jogo por encerrado. Para
vender os modelos F-18, os norte-americanos sugeriram facilidades
para a Embraer em negócios com Washington. No começo do mês,
reforçaram o lobby por meio de uma visita da secretária Hilary
Clinton. Entretanto, conta desfavoravelmente o fato de os
norte-americanos não serem lá muito dados a revelar os segredos que
os fazem ser a maior potência militar do planeta.
á os suecos, além do atual lobby
pessoal do rei, insistem que os Gripen são a melhor e mais barata
opção. Nesta semana, surpreenderam ao veicular um longo comercial,
em horário nobre da televisão brasileira, alardeando as vantagens de
seus modelos.
De fato, a oferta dos escandinavos é
a mais em conta e, num primeiro momento, os aparelhos foram os
preferidos da FAB. Mas o Planalto teria se queixado das peças
norte-americanas que os compõem, o que comprometeria a transferência
de tecnologia. No fundo, porém, deixou no ar a sensação de que
pressionou a Força Aérea a elaborar um parecer mais adequado aos
interesses do governo. E assim, o relatório final considerou os três
modelos tecnicamente equivalentes para atender às necessidades
brasileiras, abrindo caminho para o Rafale.
Não saiu de graça, porém. Houve um
mal-estar não só na Aeronáutica, mas entre militares de outros
setores. "Fico estarrecido que uma instituição incumbida de avaliar
o que melhor lhe interessa faça um estudo competente, apresente
opções, e o governo acabe tomando uma decisão política", reclama o
coronel Amerino Raposo, do Centro Brasileiro de Estudos
Estratégicos.
Pós-venda
Com os Rafale praticamente encaminhados, vai emergir a necessidade
de se extrair da parceria tudo o que ela puder render. Neste ponto,
o ex-ministro da Infra-Estrutura no governo Collor e ex-presidente
da Embraer e Varig Ozires Silva defende uma efetiva participação da
fabricante nacional de aeronaves. "É uma empresa que tem competência
suficiente para arrancar dos franceses tudo o que se necessita, mas
sempre com a retaguarda governamental", opina.
O pós-venda também deixa um pouco
reticente o brigadeiro Mauro Gandra, que comandou a Aeronáutica em
parte dos anos FHC. "Minha experiência ao trabalhar com a logística
das empresas francesas por nove anos faz-me lembrar das dificuldades
do pós-venda das mesmas, que deixa muito a desejar. Creio que se o
escolhido for o Rafale, como tudo leva a crer, o contrato de suporte
logístico pelos próximos 20 anos deve ficar muito bem amarrado."
Demais setores
O controle efetivo do espaço aéreo brasileiro, porém, vai muito além
da renovação dos caças. Exige ainda mais dinheiro e novas
negociações. Boa parte da frota está indisponível, seja por questões
logísticas, seja por falta de recursos. Entre 2015 e 2030, todas as
aeronaves terão de ser substituídas - cerca de 100 aparelhos, isso
sem contar com as futuras necessidades do Brasil, estipuladas pela
END.
Será preciso, por exemplo, trocar os
chamados "sucatões", que servem para reabastecimento de voo e
transporte de carga. Também é fundamental expandir a aviação de
patrulhamento e a de reconhecimento, aquela que ajudou a encontrar
os destroços do airbus da Air France que caiu no mar faz quase um
ano.
Não que a Aeronáutica esteja na
míngua, mas, assim como as outras co-irmãs, carece de novos
aparelhos e de reestruturações. "Armamento é um item de consumo: ou
você gasta ou fica velho, e daí tem de ser trocado", observa Ozires
Silva.
De acordo com o ex-ministro Mauro
Gandra, o maior desafio da Aeronáutica - conseguir as verbas para
manutenção dos equipamentos e para a vida vegetativa e operacional -
não vem de hoje. No entanto, ressalta, se levar em consideração as
limitações orçamentárias de um país em desenvolvimento como o
Brasil, que não entra numa guerra há mais de 65 anos, o
reequipamento da FAB, em relação às demais Forças, tem sido
"bastante razoável".
Com tantos desafios pela frente,
revigorar a Aeronáutica segue como prioridade de um país que aposta
na potencialidade de suas Forças Armadas para se consolidar como
player decisivo na comunidade internacional. Enxergando nos
franceses os parceiros ideais para essa projeção, o Brasil, de um
lado, renova sua frota de caças; de outro, adquire submarinos - um
deles, nuclear -, helicópteros e outros armamentos.
Mais do que simplesmente sair às
compras para proteger seu território, busca aprender como elas são
produzidas. Com isso, estimula sua própria economia, aumenta o
intercâmbio com os vizinhos e vai cavando seu espaço como o líder
regional capaz de representar o mundo em desenvolvimento.